Depois de um fim de semana em que o embaixador não parou de se informar sobre os acontecimentos entre Israel e o Irã, provavelmente através da rádio, que continua sendo um dos seus meios de comunicação preferidos, Husni Abdel Wahed falou com a Euronews no seu gabinete.
Atrás de si, uma vida de estudos e de trabalho diplomático. Nasceu num campo de refugiados em Jericó. Atualmente, defende uma solução para a fome dos refugiados na Faixa de Gaza. Ele sabe o que eles estão passando. Rodeado de livros e entre bandeiras palestinas e espanholas, oferece-nos um chocolate para adoçar uma conversa amarga. É um chocolate suíço, símbolo de neutralidade, palco de muitas conferências de paz, como as que ele próprio quer ver realizadas.
Euronews: Este fim de semana o Irã contra-atacou Israel com uma manobra sem precedentes. O conflito está assumindo uma nova dimensão?
Husni Abdel Wahed: Passaram-se 192 dias desde o início do genocídio perpetrado por Israel contra o nosso povo. Desde o primeiro dia, alertamos que Israel estava interessado em alargar este confronto bélico a outros atores. Aparentemente, está sendo bem sucedido, porque enquanto o mundo aguarda esta resposta do Irã, Israel continua a perpetrar o genocídio na Faixa de Gaza. Mas isso já está em segundo plano.
P: O que pensa da reação do Irã?
R: Na semana passada, Israel bombardeou o consulado iraniano na Síria e não houve qualquer condenação por parte dos países ocidentais. Anteontem à noite, o Irã contra-atacou e imediatamente houve uma reunião do Conselho de Segurança e condenações muito fortes por parte da comunidade internacional, que dá a Israel todo o direito à autodefesa. É mais um logro, se seguirmos o direito internacional.
Israel não pode defender-se?
Uma potência ocupante não tem direito à autodefesa porque é uma potência ocupante. O direito à autodefesa existe quando há uma agressão de um estado livre e soberano contra outro. O agredido tem o direito à autodefesa. É o caso do Irã. E não estou advogando nada a favor do Irã. Estou descrevendo o que aconteceu. O consulado faz parte do território e da soberania de um país. Atacar uma sede diplomática é atacar a soberania de um estado independente e soberano. E, neste caso, o direito à autodefesa pode ser aplicado. Os nossos amigos europeus e os americanos entendem o direito à autodefesa como exclusivo de Israel.
Estamos à beira da Terceira Guerra Mundial?
É possível que já estejamos vivendo uma guerra mundial. Temos de ter em conta que estamos vivendo numa época diferente das guerras anteriores. Mas se considerarmos o que está acontecendo na Ucrânia, na Palestina, no Irã e mesmo noutros locais, como Taiwan ou a China, pode-se dizer que podemos estar numa guerra mundial.
Não é possível evitá-la?
Alguns atores querem que esta guerra mundial aconteça. Pode haver uma escalada devido à desorientação da política dos EUA e, infelizmente, dos seus aliados europeus que não encorajam uma saída.
Está dizendo que os Estados Unidos e os seus aliados europeus estariam pressionando para a Terceira Guerra Mundial?
Não sei se o estão fazendo conscientemente, mas o fato de se alinharem com um homem corrupto os está a arrastando para posições que, talvez inconscientemente, os conduzam a lugares indesejáveis. Não julgamos as intenções de ninguém. Julgamos os fatos e os fatos indicam que estamos perante uma situação extremamente delicada e que pode eclodir um conflito de grandes proporções.
O primeiro-ministro espanhol, Pedro Sánchez, propôs uma solução de dois estados. Teve oportunidade de falar com ele e considera que é uma solução possível?
Sim, tive a honra de me encontrar com o Primeiro-Ministro Pedro Sánchez. Os líderes mundiais devem, tal como ele, atuar com base no direito internacional, nas convenções e nos direitos humanos. Outros atores internacionais estão se afastando desses princípios. Gostaria de salientar que a Espanha deu provas de grande iniciativa, gestão e liderança.
Liderança em que sentido?
Há vários países que seguiram o exemplo da Espanha e isso diz bem da liderança da Espanha. E também diz bem dos outros governos que partilham esta linha. Esperamos que esta posição se generalize para o bem da humanidade.
Sánchez propôs a abertura imediata de corredores humanitários, uma conferência internacional de paz, um cessar-fogo imediato e uma solução de dois estados. Considera que estas quatro propostas são suficientes e resolveriam o conflito?
Para começar, sim, é necessário exigir e aplicar um cessar-fogo imediato. Os corredores humanitários são urgentes. Alguns países estão satisfeitos com anúncios. Estou me referindo aos Estados Unidos. Quando exigiram, há duas semanas, a abertura de outros postos fronteiriços, Israel anunciou que o faria e Washington ficou satisfeito. Mas isso não foi posto em prática e tudo não passou de um anúncio. Quanto à solução dos dois estados, há que se dizer que não se trata de uma exigência palestina, porque foi um projeto político dos EUA que o mundo abraçou. E a Palestina também o aceitou, embora falar de dois estados seja um logro.
Por que razão considera que seja um logro?
Porque falar de dois estados é colocar as duas partes em pé de igualdade. E se o mundo é a favor de uma solução de dois estados, tem de tratar as duas partes em pé de igualdade. Aqueles que defendem a existência de Israel têm que defender a existência da Palestina e fornecer os instrumentos para implementar a chamada “solução de dois estados”.
Conseguiu falar com o embaixador israelita na Espanha?
Não. Não temos nada a partilhar.
É a favor da denúncia de Netanyahu perante o Tribunal Penal Internacional?
Não só Netanyahu, mas todo o Estado de Israel. Cometeram crimes de guerra. É preciso lembrar que, desde 2016, a Palestina apresentou uma queixa ao Tribunal Penal Internacional por possíveis crimes de guerra. Após um longo período de investigação, o Tribunal Penal Internacional anunciou que tinha jurisdição e autoridade para abrir um processo, mas, infelizmente, esse instrumento parece ter sido criado apenas para julgar líderes do terceiro mundo…. Porque Trump, em 2018, aplicou sanções aos procuradores e juízes do Tribunal Penal Internacional por terem admitido o caso para acusação. Israel cometeu crimes de guerra ao longo da sua história e sempre agiu com impunidade porque tem o apoio, a proteção e a blindagem dos Estados Unidos, da Alemanha, da Grã-Bretanha e de outros países.
É crítico em relação a alguns países europeus. Josep Borrell, o chefe da diplomacia da UE, propôs um plano para alcançar a paz, o que pensa?
Sim, sou crítico e isso não deve ser interpretado como algo ofensivo, porque ninguém é perfeito e não temos de ter todos as mesmas ideias. Temos realidades diferentes e opiniões diferentes e é lógico que pensemos de forma diferente. Infelizmente, no Ocidente, prevalece uma forma de pensar e parece que toda a gente tem de segui-la. Quanto às políticas dos países europeus, é inconcebível que um país que fez o que fez durante a Segunda Guerra Mundial mantenha quase a mesma linha de racismo e discriminação, mas em relação a outro povo.
Está falando da Alemanha?
Sim.
Acha que a Alemanha está agindo agora como agiu durante a Segunda Guerra Mundial?
Não necessariamente da mesma forma, mas no essencial está discriminando o povo palestino. No fim de semana passado, a Alemanha proibiu uma conferência de ativistas pró-palestinos. Eles vangloriam-se de ser defensores dos direitos humanos, da liberdade de expressão, das liberdades individuais. Onde estão essas liberdades? Em vez disso, tudo o que é feito a favor de Israel é aplaudido, apoiado e encorajado. Isto é racismo.
Isto não acontece em toda a União Europeia?
A União Europeia é um conglomerado heterogêneo, onde existem diferentes componentes e atores e nem todos pensam da mesma forma. Compreendemos que o mecanismo de trabalho da União não é o mais eficaz, porque funciona com base no consenso. Isso, num conglomerado de 27 componentes, é difícil. Respeitamos os nossos vizinhos europeus e acreditamos que eles são os mais próximos geograficamente da nossa realidade e são os que podem ser mais prejudicados pela desestabilização da nossa região. Por isso, acreditamos que deve haver uma linha de diálogo e de comunicação, mas sem discriminações ou condições. Há pessoas que são verdadeiramente admiráveis por terem a coragem de dizer as coisas como elas são.
A que pessoas se refere?
Josep Borrell, que teve o bom senso e a sabedoria, bem como o equilíbrio, para não se perder nesta azáfama, e espero que muitos sigam o exemplo desse homem sábio.
Passemos ao Conselho de Segurança da ONU. Demorou muito tempo, mas finalmente apelou a um cessar-fogo.
Os Estados Unidos e outros países ocidentais têm abusado do chamado “direito de veto” quando se trata de Israel. Israel tem um tratamento especial que outros países não têm e tem o privilégio de ter o poder de veto. Finalmente, em 25 de março, abstiveram-se sem vetar a resolução sobre o cessar-fogo, mas anunciaram, imediatamente, que esta não era vinculativa. Isto está dando luz verde a Israel para continuar o genocídio.
O Hamas e Israel estão negociando há semanas para tentar chegar a uma trégua. O que será necessário para chegarem a um acordo?
É preciso vontade e pressão para chegar a um acordo. Borrell disse há alguns meses, e com razão, que é necessário impor certas soluções. Não se pode negociar porque Israel anunciou repetidamente que não permitirá a existência de um estado palestino. Se houver condições como essas desde o início, não podemos negociar.
Acredita que o Hamas cometeu atos terroristas em 7 de outubro?
Muitos acreditam que tudo começou em 7 de outubro, mas tudo começou há mais de 75 anos e estes episódios têm se repetido vezes sem conta. É necessária uma solução política que reconheça os direitos legítimos do povo palestino, sem a qual este episódio se repetirá uma e outra vez.
Reconhece que o Hamas comete atos terroristas?
Olhe, durante muito tempo, a luta dos povos pela libertação nacional foi elogiada. Ninguém chamou “terrorista” à luta do povo vietnamita. Ou o povo argelino e a sua luta pela libertação nacional como “terrorismo”. E, assim por diante, poderia citar muitos e muitos exemplos. Simplesmente, vivemos num mundo eurocêntrico, onde se impõem conceitos e parâmetros. O que Israel faz é rotulado de “autodefesa”, quando na realidade é terrorismo. O que os palestinos fazem é, sistematicamente, rotulado de “terrorismo”.
Não é segredo que temos as nossas divergências com o Hamas, mas isso não significa que eles já não sejam palestinos.
A Autoridade Nacional Palestina, que o senhor representa, poderia encetar conversações com o Hamas para tentar uma mediação?
Tanto a Autoridade Nacional Palestina como o Hamas fazem parte do povo palestino. Somos um povo heterogêneo, como todos os povos: multiétnico, multicultural, multirreligioso. Entre nós, enquanto membros do mesmo povo, é normal que haja diálogo. Afinal de contas, eles são palestinos, quer eu goste ou não da sua ideologia. Somos todos palestinos e temos que procurar um terreno comum, especialmente tendo em conta que estamos sob ocupação. Um míssil israelita, quando atinge uma escola ou um hospital, não nos pergunta se somos militantes dessa facção, apenas mata palestinos. É nossa obrigação manter um diálogo e tentar procurar políticas de consenso nacional que beneficiem o nosso povo. Não é segredo que temos as nossas divergências com o Hamas, mas isso não significa que eles tenham deixado de ser palestinos.
Então, qual seria a sua solução para este conflito?
Com as reservas que tenho sobre o conceito de conflito, porque isto não é conflito, é colonialismo e ocupação, penso que devemos aceitar a chamada “solução de dois estados”. Mas dois estados iguais, onde o povo palestino possa viver livremente e desenvolver-se com a sua própria identidade nacional, projetando-se no futuro, ocupando o seu lugar entre as nações e contribuindo de novo para a civilização humana, como tem feito ao longo da sua história.
Fonte: euronews.pt