Quatro dias depois de a Catalunha declarar o estado de emergência por causa da maior seca de sempre na região, o governo espanhol e a Generalitat anunciaram um acordo para garantir o abastecimento da cidade de Barcelona através da água vinda em navios desde a central de dessalinização de Sagunto, na região de Valência. Apesar da pronta solução que foi encontrada e da aparente solidariedade regional, esta crise destapou antigas tensões em Espanha, com alguns valencianos a lembrar que, no passado, os catalães lhes fecharam a torneira quando precisaram e outras comunidades a lamentar a politização da situação.
“Não à água para a Catalunha”, surgiu num cartaz na central de dessalinização de Sagunto no dia do anúncio do acordo, segundo o qual o governo espanhol pagará o aumento da produção da central – que alegadamente está a trabalhar só a 10% da capacidade – e o executivo catalão ficará responsável por financiar o transporte em navios.
A partir do verão, um navio com 20 mil metros cúbicos de água (suficiente para um terço do consumo de Barcelona) sairá diariamente da central – sendo possível, em caso de necessidade, chegar até aos dois navios por dia. O acordo prevê ainda desbloquear o financiamento para duas novas centrais de dessalinização na Catalunha, para fazer face a um problema que tenderá a agravar-se no futuro por causa do aquecimento global.
“Não vamos negar água a quem, no seu dia, a negou a nós”, disse o líder da Generalitat Valenciana, Carlos Mazón, do Partido Popular, defendendo a “solidariedade” e insistindo que “sobre a vingança não se pode construir nada”. Mazón defendeu que “já é hora de construir algo” e que “estes são os gestos que podem ajudar a construir algo”. Sempre desde que isso não prejudique os valencianos, sendo que é preciso pensar não apenas na água para consumo, mas também para a agricultura – o campo “agoniza de sede”, reiterou.
Apesar dessa solidariedade valenciana, muitos recordam como foram travadas as transferências de água do vale do Ebro (que cruza Aragão e a Catalunha) para sul, depois de os socialistas com José Luis Zapatero terem derrogado o Plano Hidrológico Nacional aprovado no tempo de José María Aznar. Uma derrogação apoiada pelos independentistas catalães.
Ao mesmo tempo, os valencianos lamentam que essa mesma solidariedade não seja seguida pela região de Castela-Mancha, que sempre se opôs às transferências de água desde o Tejo para o Segura. Já no governo socialista de Pedro Sánchez, foram aprovados caudais mínimos no rio que desagua em Lisboa e um corte da água que é enviada para o Segura, o que traz graves implicações para a agricultura nesta região.
O líder do executivo de Castela-Mancha, o socialista Emiliano García-Page, felicitou-se com a nova “teoria da solidariedade hídrica”, que passa por garantir a água para consumo e não para a agricultura. “Água para beber, sim; água para regar, se sobrar. E aqui não sobra”, disse, reclamando que esta teoria se aplique a todos. García-Page lamenta que muitas localidades da sua região “se abasteçam no verão com cisternas” e que “durante anos” se tenham travado os projetos de construção de novas centrais de dessalinização – “o invento do século” – “porque era mais fácil ter água oferecida do Tejo”.
O problema da seca não é exclusivo da Catalunha, sendo que também houve um acordo entre Múrcia e a Andaluzia para enviar a água extra da central de dessalinização de Escombreras, da primeira região, até Almería e Málaga. As duas comunidades autónomas são ambas lideradas pelo PP, com o apoio da extrema-direita do Vox.
Arma política
O tema tornou-se, obviamente, numa arma de arremesso político. O líder do Partido Socialista Catalão (PSC), Salvador Illa, considerou a solução encontrada para fazer face à seca na Catalunha um exemplo da “Espanha generosa” e “territorialmente coesa”. Ao mesmo tempo, atacou o presidente da Generalitat, Pere Aragonès, da Esquerda Republicana da Catalunha: “Perdemos tempo durante dez anos. O que falhou? Falharam os governos catalães. Falhou [Artur] Mas, [Carles] Puigdemont, [Quim] Torra e agora está a falhar Aragonès”, disse, enumerando os anteriores líderes independentistas.
Rapidamente houve quem recuperasse as promessas, há quase 20 anos, do então líder do PSC e presidente da Generalitat, Pasqual Maragall: “Nem uma gota de água do Ebro para Valência.” E de como brindou com cava a decisão de Zapatero de derrogar a ideia da transferência de água do Ebro para o Segura – junto com a então ministra do Meio Ambiente, Cristina Narbona, atual presidente do PSOE.
Também o atual líder do PP, Alberto Núñez Feijóo, não passou ao lado do tema. “Enquanto eles levantam muros, nós construímos pontes”, disse na Galiza, em plena campanha eleitoral na região, chamando a atenção para o facto de ser uma comunidade governada pelo PP que está a facilitar a solução para a seca na Catalunha (liderada pelos independentistas).
Estas declarações foram criticadas pela ministra para a Transição Ecológica e terceira vice-presidente do Governo espanhol, Teresa Ribera. “Não penso que seja razoável que o sr. Feijóo se atribua um mérito que não tem”, afirmou na conferência de imprensa com o responsável catalão pela Ação Climática, David Mascort. “Com a água o pior que se pode fazer é populismo”, indicou. “Nem populismo, nem demagogia, mas trabalho sério e centrar-se de forma responsável na gestão e na apresentação de soluções”, acrescentou.
Por: susana.f.salvador@dn.pt