Milei em versão moderada convida Lula para a posse

"Estimado presidente", começa a carta, entregue pela futura ministra das Relações Exteriores da Argentina ao homólogo brasileiro, onde se fala em "construir laços". Radicalismo do eleito morreu na campanha. Planalto avalia o que fazer.

O Javier Milei em campanha eleitoral e o Javier Milei já eleito presidente da Argentina são duas personagens diferentes. Se o primeiro chamava Lula da Silva de “ladrão”, “corrupto” e “comunista”, o segundo refere-se ao chefe de Estado do vizinho Brasil, principal parceiro comercial do país, como “estimado presidente”. Na última semana, Milei entregou uma carta a Lula num tom cordialíssimo, a fazer prever relações institucionais, afinal de contas, harmoniosas entre os dois gigantes sul-americanos.

A carta, entregue por Diana Mondino, futura ministra das Relações Exteriores da Argentina, ao seu, em breve, homólogo brasileiro Mauro Vieira, fala em caminho conjunto “de prosperidade e crescimento” e na construção de “laços” entre os governos argentino, acabado de eleger, e brasileiro, eleito há pouco mais de um ano.

“Sei que o senhor conhece e valoriza cabalmente o que significa este momento de transição para o processo histórico da Argentina, o seu povo, e naturalmente para mim e para a minha equipa de colaboradores que me acompanharão na próxima gestão do governo”, diz a carta.

“Em ambas as nações temos muitos desafios pela frente e estou convencido de que uma troca nos campos económico, social e cultural, baseada nos princípios da liberdade, nos posicionará como países competitivos em que os seus cidadãos podem desenvolver ao máximo as suas capacidades e, assim, escolher o futuro que desejam”, acrescenta.

Na carta, Milei, um libertário de ultradireita que prometeu dolarizar o país, encerrar o banco central, privatizar todas as estatais possíveis e comercializar até órgãos humanos, ainda diz esperar que a atuação conjunta entre os países se traduza em “crescimento e prosperidade para argentinos e brasileiros”.

“Sabemos que os nossos países estão estreitamente ligados pela geografia e pela história e, a partir disso, desejamos seguir compartilhando áreas complementares, a nível de integração física, comércio e presença internacional, que permitam que toda esta atuação conjunta se traduza, de ambos os lados, em crescimento e prosperidade para argentinos e brasileiros”, continua.

A participação do Brasil na economia argentina é fundamental: está, com 20%, empatado com a China na lista de maiores importadores e acima dos Estados Unidos, com 10%, e da Alemanha, com 6%, segundo dados de 2020 [ver quadro].

“Desejo que o tempo em comum como presidentes e chefes de governo seja uma etapa de trabalho frutífero e construção de laços que consolidem o papel que a Argentina e o Brasil podem e devem cumprir na Conferência das Nações”.

E o presidente, que acaba de derrotar Sergio Massa, peronista de centro-esquerda, na corrida à Casa Rosada, encerra o documento com saudações de “estima e respeito” a Lula e a destacar que espera vê-lo na tomada de posse, dia 10 de dezembro.

“Um circo”

Desde que em 2021 se apresentou como candidato às eleições encerradas em segunda volta no último dia 19, Milei acusou Lula de atuar contra a sua candidatura e chamou-o de “comunista furioso”. “A casta vermelha treme. Muitos comunistas furiosos e agindo diretamente contra a minha pessoa e o meu espaço. A liberdade avança. Viva a liberdade, carajo”, escreveu, no X, ex-Twitter, a propósito de um empréstimo do Brasil ao governo argentino ainda sob a presidência do peronista Alberto Fernández.

Noutra ocasião chamou-o de “ladrão” e de “ex-presidiário” e numa entrevista recente a um veículo do Peru respondeu “não!”, à pergunta se se reuniria com Lula, como chefe de Estado.

Do lado brasileiro, o chefe da diplomacia Mauro Vieira desvalorizou os arroubos verbais do então candidato e valorizou o gesto de Diana Mondino. “Foi uma grande ocasião e um grande gesto dela querer ser portadora pessoal desta carta do presidente”, afirmou no Itamaraty, palácio sede do ministério das Relações Exteriores do Brasil, em Brasília. “O que foi dito durante a campanha é uma coisa, o que acontece durante o governo é outra”, resumiu.

Do lado argentino, Mondino disse que “o Brasil é o principal sócio da Argentina”. “Perdi muito tempo a explicar que Milei nunca disse as coisas que disseram que ele disse, o Brasil é o principal sócio da Argentina e não vamos romper nada, armaram um circo”, declarou ao jornal O Globo.

“Seria um prazer e uma honra contar com a presença do presidente brasileiro na posse”, continuou Mondino, que é da área política de Maurício Macri, o presidente de centro-direita que governou a Argentina de 2015 a 2019 e cujo apoio a Milei na reta final é visto como decisivo para o triunfo do libertário – e como essencial para assegurar a governabilidade no Congresso nos próximos quatro anos.

Um detalhe revelador do clima de apaziguamento entre Casa Rosada e Planalto foi a decisão do recém-eleito de manter Daniel Scioli, peronista derrotado por Macri em 2015, como embaixador no Brasil.

Excursão bolsonarista

Mas, no fim das contas, Lula vai aceitar o convite de Milei? “Não sei qual será a decisão dele, se o presidente poderá ir ou não à posse, ele estará, por esse dias, chegando de uma grande visita ao estrangeiro”, disse Mauro Vieira a propósito da presença do presidente do Brasil na 28.ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP 28), no Dubai, Emirados Árabes Unidos, e do périplo por Arábia Saudita, Qatar e Alemanha.

Segundo assessores presidenciais, o presidente pondera três hipóteses: estar em Buenos Aires, enviar o vice-presidente Geraldo Alckmin ou atribuir a Mauro Vieira a sua representação. A decisão de Lula pode vir a ser tomada em cima da hora, dada a proximidade geográfica entre os países.

Para tomar essa decisão, entretanto, Lula quer certificar-se de que não será recebido em clima hostil, até porque o ex-presidente Jair Bolsonaro, candidato de extrema-direita derrotado em 2022, também foi convidado e confirmou não só a sua presença mas como também de uma vasta comitiva de aliados. A lista oficial inclui dois filhos de Bolsonaro, o senador Flávio e o deputado Eduardo, ex-ministros, como Ricardo Salles, Ciro Nogueira, Osmar Terra ou Jorge Seif, e muitos parlamentares num total de 50 (a lista pula do número 12 para o 12+1 e depois para o 14 para não incluir o número 13, que identifica o PT, de Lula, nas urnas).

 

ENTREVISTA A ROBERTO GEORG UEBEL

“Relação não será de entendimento mas será harmoniosa”

Roberto Georg Uebel é professor de Relações Internacionais e economista da Escola Superior de Propaganda e Marketing

Após a eleição, Javier Milei tem sido mais pragmático e cordial com Lula da Silva do que esperava?
Sim, mais pragmático do que todos esperávamos, sobretudo se tivermos em conta que em campanha disse que o Lula não era bem-vindo, que a China deixaria de ser um parceiro estratégico e que iria sair do bloco do Mercosul. Na verdade, o Milei eleito, ao contrário do Milei candidato, sabe que mesmo para cumprir os planos mais radicais dele, como a dolarização e o fecho do banco central, precisa do incentivo, em turismo e importações, de Brasil e China, e que não tem nem condições políticas de sair do Mercosul.

A economia argentina, mesmo a ultraliberal sonhada por Milei, não tem viabilidade, então, sem uma relação forte com os principais parceiros?
Por esta ordem, os principais importadores da Argentina são China, Brasil e EUA, seguidos da Alemanha e ele, em campanha, conseguiu ofender os três primeiros, porque além de chamar o Lula de corrupto ou a China de ditadura ainda criticou Joe Biden. Agora viu que não pode ir por aí e que essas fanfarronices terminam em campanha, o que o distingue de Jair Bolsonaro, cujas fanfarronices continuaram mesmo depois de eleito.

O convívio entre Lula e Milei tenderá então a ser pacífico?
Se no âmbito interno ele tentará manter-se fiel ao programa e às promessas de campanha, no plano externo vai ser muito mais pragmático, como indica o detalhe de já ter dado a entender que mantém como embaixador no Brasil o ex-candidato presidencial peronista, Daniel Scioli, indicado ao cargo por Alberto Fernández. A relação Brasil-Argentina durante o convívio Lula-Milei não será de entendimento total, claro, mas será harmoniosa. No fundo, Diana Mondino, a próxima ministra das Relações Exteriores, é, como a maioria dos novos ministros nomeados, do núcleo de Maurício Macri, da direita tradicional, o que gerou até algum descontentamento entre os radicais mais próximos de Milei.

Fonte: dn.pt

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