Argentina – “A dúvida de Milei é se consegue durar. A de Massa é se consegue governar”

O segundo turno das presidenciais argentinas, no próximo domingo, disputa-se entre um libertário e o atual ministro da Economia. O investigador principal no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, Andrés Malamud, falou sobre o que está em causa nas eleições do seu país natal e os desafios de cada um dos candidatos.

No primeiro turno das presidenciais argentinas, o candidato peronista e ministro da Economia, Sergio Massa, teve 36% dos votos, mais seis pontos do que o segundo classificado, o libertário Javier Milei, que tinha ganho as primárias. Este resultado surpreendeu-o?
Já me tinha surpreendido o resultado das primárias e por isso estava preparado para uma nova surpresa. Era esperada uma derrota oficialista porque desde 2018 nenhum oficialismo ganha as eleições presidenciais na América Latina, exceto no Paraguai. E este oficialismo tem 150% de inflação, 40% de pobreza e 50% de informalidade. Se os oficialismos perdem e este é pior do que a média, devia perder também. E de facto ganhou porque se dividiu a oposição. Com 36,37% o governo não ganha eleições, a oposição é que as perde.

O problema aqui não foi que Massa tivesse estado bem, foi a oposição que teve um mau resultado?
Foram as duas coisas. É preciso reconhecer em Sergio Massa a habilidade para dissociar-se do governo. Ele fala do seu governo no futuro, aquele que começa em dezembro. E ignora completamente o atual, critica o MNE, critica o presidente, afasta-se, sem a criticar, da vice-presidente… É muito hábil. Além disso, o peronismo, o seu partido, tem o controlo territorial de várias províncias e municípios importantes. E isso mobiliza os eleitores. Nas primárias, houve 70% de participação, nas gerais, na primeira volta, houve 78%. A maior parte desse aumento foi para ele. Foi a mobilização do partido, não por causa da solidariedade para com ele, mas porque em causa estava também a eleição de deputados, senadores e vereadores. Então, os presidentes de Câmara e governadores queriam ter as suas legislaturas com fiéis. E, portanto, mobilizaram-se em defesa do interesse próprio, não em defesa do candidato próprio.

Então, nesta segunda volta, pode acontecer o contrário, não conseguirem mobilizar os peronistas?
Exato. Desta vez vota-se apenas no presidente. E, portanto, os aparelhos e os territórios têm menos incentivo para mobilizar os eleitores. Alguém diz até o contrário. Muitos dos caudilhos peronistas preferiam um presidente débil, fraco, como o Milei, para poder extorquir do que um presidente próprio que tenha mais poder que eles. Nunca vão dizê-lo em público, mas em privado circula.

Surpreendeu-o o crescimento do Milei em tão pouco tempo, um candidato libertário que surge quase do nada e tem possibilidades reais de poder chegar à presidência?
Eu esperava que tivesse perto dos 20% nas primárias, ele conseguiu 30%. Mas não foi surpresa que ele ficasse no primeiro lugar, como o candidato individual mais votado. Surpresa foi que o seu partido fosse o mais votado. Os outros partidos, o governo peronista e a oposição, Juntos pela Mudança, tinham dois candidatos cada. A expectativa era que, somados, tivessem mais votos do que o Milei sozinho. O facto de o seu partido ser mais votado do que os outros, foi o que demoliu o sistema de partidos como o conhecíamos. Gerou expectativas de que chegaria à segunda volta e um dos dois jogadores tradicionais ficaria de fora. E assim foi. E essa foi a grande revolução que aconteceu na primeira volta. Milei substituiu a oposição tradicional. É como se o Chega substituísse o PSD.

E agora as sondagens estão muito divididas…
É outra corrida. Parte-se do zero. A maioria das sondagens dá empate técnico, a diferença de um para o outro está dentro da margem de erro. Boa parte dão Milei em primeiro, mas é preciso ter em conta que há manipulação. A primeira sondagem que deu Milei em primeiro foi feita pelo Sebastián Galmarini, que é o cunhado de Massa. A Massa convém desmobilizar os eleitores da oposição. E fá-lo fazendo-os acreditar que já ganharam. Por isso o governo também deixou o feriado na segunda-feira após as eleições. O governo costumava passá-lo sempre para a sexta-feira. Mas o governo decidiu deixá-lo. Para quê? Para que as pessoas vão de férias. A convicção de todos é que se houver mais participação, haverá mais votos na oposição. Se houver menos participação, haverá mais voto sólido, peronista.

Por que é que o Milei ganhou tanto destaque em tão pouco tempo?
Desde logo pelos erros da oposição tradicional. A oposição tradicional tinha um penálti sem guarda-redes e chutou para fora. [O ex-presidente Maurício] Macri decidiu não apoiar o candidato natural [Horacio Rodríguez] Larreta, o chefe de governo de Buenos Aires, de onde saem sempre os candidatos da oposição ao peronismo, saiu ele, saiu Fernando De La Rúa. E depois, não deu o apoio completo à candidata que ele utilizou para o desafiar, Patricia Bullrich. Porque ele sempre esteve mais perto do discurso de Milei. Isto é semipúblico, mas posso assegurar que em privado é assim. Ele sente-se muito mais próximo do discurso forte, da rutura, mais liberal de Milei, do que do discurso suave, dos acordos, que propunha o seu próprio partido.

Apesar de, segundo Milei, fazer parte da “casta política”…
Milei sempre manteve um certo respeito por Macri e já tinha proposto Macri como uma espécie de MNE não oficial. O chanceler efetivo da Argentina, porque é importante no futebol, porque é conhecido no mundo. E Macri sempre falou bem de Milei e sabemos agora que tinha contactos com ele.

Então não o surpreendeu que Macri o tivesse apoiado formalmente, tal como Bullrich.
Se procurar no Google vai encontrar umas declarações minhas em que digo que, no seu íntimo, o seu candidato é Milei e não Bullrich. Eu fui trucidado pelo seu partido e a primeira coisa que ele fez, quando Bullrich perdeu, foi levá-la a Milei para dar o seu apoio. Eu não estava a dar a minha opinião, era um dado que eu tinha. Ele preferia Milei.

Porque é que não existe na Argentina e nos eleitores o receio das mudanças que Milei propõe? Não é visto como um Jair Bolsonaro ou como um Donald Trump…
O governo e parte da oposição querem vê-lo dessa maneira, como fazendo parte do populismo de direita extrema, como Trump e Bolsonaro, que quer destruir a democracia. Mas Milei não é nacionalista. Está aliado com o nacionalismo e a sua candidata a vice-presidente é nacionalista, amiga da ditadura, mas não é formalmente apoiante. Milei é um libertário, um anarcocapitalista. O ídolo de Milei é [a ex-primeira-ministra britânica] Margaret Thatcher, que na Argentina é inimiga histórica [venceu a guerra das Falkland ou Malvinas]. Trump diz: “Make America great again”. Bolsonaro diz “Brasil por cima de todos”. O Milei diz: “Viva a liberdade, carajo”. Não diz Argentina. Não é um nacionalista. E sobretudo, há muita gente que acha que Milei não é um perigo porque não terá capacidade de fazer danos, independentemente do que pensa, de ser um anarco-libertário. Ele não vai ter poder institucional. Não tem governadores ou presidentes de Câmara e, na Câmara dos Deputados e no Senado, vai ter uma hiperminoria.

Ele não conseguiu os mínimos para se proteger no Congresso?
Todos os seus deputados serão perto de um sexto da Câmara, no máximo. Ele precisava de um terço para se blindar legislativamente e evitar um impeachment. Nem com o apoio do Macri ele chega a um terço. Ele vai precisar de ter o apoio de mais deputados de outros partidos, o que só pode conseguir, provavelmente, com o apoio do peronismo. Não do kirchnerismo, do peronismo do interior, que esteve com Cristina [Kirchner] por necessidade ou por fraqueza, mas que é de direita. E há uma coisa engraçada, que também é público: Milei foi assessor do [Daniel] Scioli, o candidato do peronismo da Cristina, em 2015.

Então tem algum espaço de manobra dentro do peronismo?
Acho que é muito estreito, porque ele dinamitou as pontes com todos. Mas se ele quiser durar precisa de ter. Na América Latina, sabe-se que os presidentes que não têm escudo legislativo, isto é, um terço nas câmaras, são destituídos. Por pedalada fiscal, como Dilma [Rousseff], por inabilidade mental, no caso do Equador… Não é preciso matar ninguém. Encontra-se uma maneira. Quando não são populares, o Congresso destitui. E ele não será popular. Porque o próximo presidente tem de fazer um ajuste forte. Subindo os preços da eletricidade, dos transportes, dos serviços públicos… Que é o que, na América Latina, desencadeia os protestos sociais. Em África, é o aumento do preço da comida. Na América Latina, é o aumento do combustível, dos transportes. Dilma, Chile, tudo. E é isso que tem que subir na Argentina.

Uma das propostas de Milei é da dolarização da economia. Não o conseguirá fazer?
Há três países da América Latina, três de vinte, que têm o dólar como moeda oficial. O Panamá, desde a sua origem, em 1904. El Salvador e o Equador, depois. A diferença é que são países pequenos, são países unitários, e recebem remessas dos EUA. Entram dólares por causa dos imigrantes que os mandam. A Argentina é um país muito grande e é um país federal, quer dizer que se o governo decidir não emitir pesos, as províncias vão emitir (patacones, bónus provinciais, etc…). E não tem remessas. Os argentinos no exterior são 2% da população, não são 20%. Então não há entrada permanente de dólares. E não se pode dolarizar sem dólares. Dolarizar significa não apenas que se deixa circular o dólar, mas que se paga em dólares. Como faz o Estado para pagar salários e pensões em dólares se não tem dólares? Milei diz que tem um truque, mas ninguém acredita.

Esta semana rebentou um escândalo de escutas. O que é que aconteceu e poderá influenciar o resultado das presidenciais?
As caves da democracia argentina são os serviços de informação. Que foram sempre escuros, nunca conseguiram ser administrados bem por nenhum governo democrático, mesmo os governos que precisavam de ser transparentes, não tiveram vontade ou capacidade de transformar isso. E agora sabe-se que o kirchnerismo utilizou espionagem ilegal para fazer acusações contra os inimigos. Eu acho que isto não muda muito. Numa segunda volta, as pessoas não votam naquele que gostam, votam contra aquele que desgostam. As pessoas que odeiam Milei não vão passar a gostar por isso. As pessoas que odeiam o Massa também não vão mudar. Há um paradoxo, são dois candidatos mormente impopulares. A maior parte das pessoas votarão contra. Então se a eleição for sobre Massa, ganha Milei. Se for sobre Milei, ganha Massa. Cada um está a tentar que a pergunta da eleição seja sobre outro. Se for sobre si, perdem. Esta será uma eleição perdida por alguém. Quem ganha, ganha por falta de oposição.

O debate, previsto para ontem à noite, tem alguma influência entre os eleitores, tendo em conta que ainda há uma percentagem de indecisos?
O debate pode mobilizar ou desmobilizar os eleitores. Os bons analistas políticos, os que fazem sondagens, dizem que esta é uma eleição que se define pela taxa de participação. Se houver muita participação é Milei que ganha, se houver pouca é Massa. Então um candidato pode cometer muitos erros e as pessoas decidirem ficar em casa. E aqui é Milei quem arrisca mais. Porque Massa teve seis pontos percentuais mais do que ele. Parte em vantagem, supostamente. E, normalmente, os debates não se ganham, perdem-se. Nos dois debates da primeira volta, Patrícia Bullrich perdeu. Só que não ganhou Massa nem Milei. A vitória foi para um quarto candidato, [Juan] Schiaretti. Agora não há para onde ir. Mas há onde ficar. Em casa. O debate vai definir se Milei afugenta votos ou não. Se não afugentar ele ganhou o debate.

Que Argentina podemos esperar depois das eleições? E deve a comunidade internacional ficar preocupada?
No curto prazo, sim. No longo prazo, menos. No longo prazo, a Argentina tem tudo o que o mundo precisa: alimentos, energia e distância geográfica dos centros de conflito. No curto prazo, tem uma economia insustentável com o atual nível de preços da eletricidade, dos transportes… Tem que ajustar o que os argentinos pagam por transporte, por aquecimento. Pagam montantes ridículos. Cinco euros de eletricidade bimensal em casas grandes. E, como disse, isto implica um tarifazo. E o tarifazo significa protesto político. E o protesto político é instabilidade política.

E é o impeachment para Milei.
É um possível impeachment se ganhar Milei. É uma revolta popular se for Massa. Massa vai ter apoio institucional se ganhar, porque o peronismo tem metade das províncias e tem um contingente legislativo. Mas o apoio popular dependerá da popularidade das políticas e as políticas serão impopulares no início do governo. Não pode ser de outra maneira.

Na lei argentina o que é que pode desencadear o impeachment?
Mau desempenho das funções.

Basta isso?
Exatamente. A Câmara dos Deputados é quem acusa e o Senado é quem julga. Não há um livro de receitas. Não há nada que explique o que é um mau desempenho. É um julgamento político. Não é criminal, não é penal, não está tipificado. É a avaliação dos legisladores.

Onde Massa tem mais facilidade em ter a maioria…
No Senado vai ter. Na Câmara dos Deputados faltam-lhe 30.

Mas consegue arranjar facilmente?
Facilmente não. Mas a questão é que para se proteger de um impeachment ele não precisa ter maioria. Precisa de ter um terço. E Massa tem mais de um terço na Câmara dos Deputados e metade do Senado. Massa não enfrentará um impeachment, esse cenário não existe. A questão de Massa é se consegue governar sem ser uma marioneta do kirchnerismo. Essa é a pergunta que as pessoas se fazem.

E consegue? Disse que ele se tem conseguido desvincular do governo…
Sim, perante a opinião pública. Mas boa parte dos senadores e dos deputados do seu partido respondem a Cristina. A dúvida de Milei é se consegue durar, porque não tem o escudo legislativo. A de Massa é se consegue governar, porque não tem o controlo do seu partido.

E como será a relação da Argentina com o eterno vizinho e rival, o Brasil?
Milei é de terror, porque Milei promete ser aliado dos EUA e Israel e de mais ninguém. E não fazer acordos com regimes comunistas como a China e o Brasil. Ele diz que Lula é comunista e corrupto. E a Argentina e o Brasil estão condenados a viver juntos. Lula está a apoiar Massa, mas os governantes do Brasil, do Paraguai, do Fundo Monetário Internacional, dizem que é mentiroso. Dizem, sempre em privado, por vezes em público. Santiago Peña, presidente de Paraguai, disse em público: “Massa mentiu-me. Estivemos a negociar com o ministro da Economia e ele mentiu-me”. No governo do Brasil, dizem em privado. “Estivemos 24 horas a negociar com ele, chegamos a um acordo e ele fez tudo o contrário quando chegou à Argentina.” Os fundos monetários estão fartos das mentiras. Então os vizinhos e as instituições internacionais estão sem opção, entre o terror de Milei e a desconfiança de Massa.

susana.f.salvador@dn.pt

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