O número de menores que terão sofrido abusos sexuais por parte de religiosos católicos em Espanha desde 1940 será superior a 200 mil, mas o número duplica para mais de 400 mil quando incluídos abusos cometidos por laicos em ambientes religiosos, de acordo com um primeiro relatório independente divulgado esta sexta-feira – e que rompe o silêncio num país no qual as vítimas enfrentam, há anos, a falta de transparência da Igreja.
“Houve gente que se suicidou (…), gente que nunca mais conseguiu recompor a sua vida”, afirmou o defensor público Ángel Gabilondo, em conferência de imprensa, ao entregar o relatório de mais de 700 páginas e intitulado “Uma resposta necessária”, ao Congresso espanhol, que o havia encomendado em março de 2022.
O relatório não fornece um número exato, mas inclui uma investigação com a participação de 8 mil pessoas, segundo a qual 0,6% da população adulta espanhola (cerca de 39 milhões de pessoas no total) afirma ter sofrido abuso sexual por parte de membros da Igreja Católica quando eram menores.
A cifra aumenta para 1,13% da população adulta (o equivalente a mais de 400 mil vítimas), caso se leve em conta os abusos cometidos por laicos em ambientes religiosos, detalhou Gabilondo, que coordenou a comissão independente que trabalhou durante um ano e meio.
Gabilondo, ex-ministro socialista da Educação, afirmou que há casos que remontam à década de 1940, mas que a maior parte deles ocorreu entre 1970 e 1990.
Essa época vai desde o início da ditadura franquista (1939-75), que tinha na Igreja um dos seus pilares, até um período com a transição democrática já bem estabelecida.
A comissão de especialistas entrevistou 487 vítimas, que realçaram “os problemas emocionais” que sofreram ao longo das suas vidas, relatou Gabilondo.
“Nunca serei uma pessoa normal. Nunca deixarei de fazer terapia, nem de tomar remédios”, disse à AFP uma das vítimas, Teresa Conde, para quem o relatório é uma “luz” que deve levar as autoridades civis a garantirem “que pelo menos isso não se repita”.
Hoje professora de Filosofia, Teresa, de 57 anos, foi abusada durante anos por um frade amigo, próximo da sua família, a partir dos 14 anos, quando frequentava como voluntária uma escola religiosa em Salamanca, no início dos anos 1980.
“Ocultação”
Ao contrário de França, Alemanha, Irlanda, Estados Unidos ou Austrália, nunca havia sido feita, em Espanha, país tradicionalmente católico, uma investigação sobre pedofilia no clero.
Em França foram registados 216 mil menores vítimas desde 1950; na Alemanha, 3677 casos entre 1946 e 2014; e, na Irlanda, mais de 14 500 pessoas foram indemnizadas.
Na Igreja Católica espanhola “durante muitos anos houve o predomínio de certa vontade de negação dos abusos (…), de ocultação, ou de proteção dos abusadores”, denunciou o defensor público, que criticou a transferência de religiosos denunciados para paróquias de outros países.
Entre várias recomendações, o relatório pede “a criação de um fundo estatal para o pagamento de indemnizações” às vítimas e que se lhes garanta ajuda psicológica durante o tempo que for necessário.
A Igreja Católica, que durante anos recusou a participação em investigações, rejeitou participar na comissão, embora tenha fornecido documentos.
Consultada pela AFP, a Conferência Episcopal Espanhola (CEE) disse que tomará uma posição sobre o tema numa assembleia extraordinária que acontece na segunda-feira.
À medida que a pressão política aumentou, a Igreja anunciou em fevereiro de 2022 uma auditoria própria e encomendou-a a um escritório de advogados, que planeia concluí-la antes do final do ano.
A Igreja afirma ter implementado protocolos de ação contra abusos e ter instalado escritórios de “proteção aos menores” nas suas dioceses.
Um país “um pouco melhor”
“Hoje somos um país um pouco melhor, porque se deu a conhecer uma realidade que toda a gente sabia há muitos anos, mas da qual ninguém falava”, comemorou, desde Bruxelas, o líder do governo espanhol, o socialista Pedro Sánchez.
A publicação do documento foi muito celebrada pelas vítimas. “É um relatório sério, que responde à reivindicação das vítimas”, que tiveram “voz” na sua elaboração, diz à AFP Juan Cuatrecasas, membro fundador da associação Infância Roubada.
Pai de um jovem abusado por um professor numa escola católica na cidade basca de Bilbao, entre 2008 e 2010, Cuatrecasas afirma que o relatório não deve marcar “um fim”, mas “o início” de um processo, no qual o Congresso deve trabalhar para oferecer “reparações” às vítimas.
“As vítimas não pedem esmola. Pedem que, num Estado de direito, sejam consideradas como vítimas e que tenham direito a todos os recursos e às reivindicações que solicitam”, frisou.
Fonte: dn.pt