Conheça a saga de Brasileiros que mudaram para Portugal e hoje vivem em acampamentos

O plano de algumas dessas pessoas passa por ficarem ali acampadas pelo menos mais seis meses, para pouparem dinheiro e darem, então, corpo a outras metas como comprar autocaravanas ou tirar um curso de gastronomia.

A rotina de acordar é semelhante para a maioria das pessoas. Espreitar o telemóvel, ir até a casa de banho, tomar o pequeno-almoço, dar um jeitinho na casa antes de ir rumo a mais um dia de trabalho. É assim que começa o dia para as brasileiras Andreia Machado da Costa e Márcia Álvaro, que vivem no concelho de Cascais e trabalham como empregadas de limpeza. A diferença é que moram em tendas de campismo, uma estratégia da dupla para fugir dos arrendamentos caros e poupar dinheiro. O local é a Quinta dos Ingleses, em Carcavelos, e além de Andreia e Márcia estão ali mais cerca de 30 moradores.

Foi justamente quando a carioca Márcia, passava a vassoura na casa que o DN chegou para acompanhar durante 24 horas como é ali viver. A previsão meteorológica não era das melhores: a depressão Aline prometia ventos de até 100km/h e chuva. O barulho das ondas podia ser ouvido de longe, mas o tempo nublado não permitia a visão do mar.

A noite passada já tinha exigido um reforço na fixação das tendas, algo que estava pronto quando chegaram da jornada laboral após as 22h00. Quem tinha deixado a casa mais reforçada era um campista vizinho. “Aqui todo mundo se ajuda e nos veem como as administradoras do parque”, brinca Andreia, de 49 anos. O título foi atribuído pela liderança das duas, que ficaram famosas ao terem sua história já divulgada na comunicação social. Márcia já soma mais de 14 mil seguidores no TikTok, onde posta vídeos diários da rotina: a preparação das refeições, a organização das tendas, as limpezas que realizam nos clientes, sempre com bom humor e sotaque carioca.

Aliás, bom humor não falta entre as amigas. “Ô Márcia, pega na louça aí, vamos começar, hoje é tua vez”, diz Andreia. Sem um sistema de canalização, o método é simples: uma lava e outra enxagua. No dia seguinte, trocam de tarefa. A água é de uma torneira próxima, onde enchem diariamente garrafões de plástico.

A reserva do líquido também serve para escovar os dentes, outras limpezas e para tomar banho nos dias em que estão de folga. “Sem banho não ficamos, porque só fica sujinho quem quer”, afirma Andreia. As patroas das casas onde trabalham permitem que a dupla – trabalham juntas – tome banho e utilize a máquina de lavar roupa.

Depois da loiça limpa, começam a fazer o pequeno-almoço reforçado. Ovos mexidos, torradas, bolachas e leite com chocolate quente. As refeições são preparadas em um pequeno fogareiro com botija de gás. Ambas cozinham, mas quem mais comanda as panelas é Márcia, que tem o sonho de fazer um curso de gastronomia e ser profissional do ramo. O fogareiro fica na tenda da carioca, que é maior. De um lado, está a cama e uma série de produtos de beleza e higiene arranjados. No centro, bancos e utensílios de cozinha em uso. Do outro, os mantimentos e as demais loiças. Cobertas com um plástico, para não apanharem gordura, estão as roupas da moradora. As que trouxe limpas do dia anterior estão penduradas a secar.

Andreia dorme em tenda própria, que é menor. No meio, fica outra tenda, do mesmo tamanho, que é onde ficam guardadas mais itens das duas, como numa dispensa.

Estratégia, não necessidade

Enquanto comiam, conversavam com o DN sobre como foram ali parar. Desde que a história ganhou repercussão, muitos são os comentários negativos, principalmente que lhes faltou planeamento migratório. No entanto, elas afirmam que não foi assim.

Andreia mudou-se para Portugal há cerca de um ano e sete meses, depois de perceber que, mesmo trabalhando muito como marceneira no Brasil há 25 anos, o dinheiro era pouco. A profissional, conhecida por ser “um espírito livre”, também queria explorar novas oportunidades e lugares. Conseguiu, através de buscas na internet, um emprego com uma empresa portuguesa de mobiliário quando ainda estava no Brasil. Não foi fácil, já que todos achavam muito estranho uma mulher na função de marceneira. “Diziam e ainda dizem que é trabalho de homem aqui”, lamenta.

A brasileira trabalhou remotamente até mudar-se, com uma poupança para começar a vida no novo país. Tinha emprego garantido e moradia. O primeiro mês correu bem, mas a imigrante viu que o sistema de trabalho não era compatível com aquilo que achava ser o mais correcto e decidiu sair.
Contou com a ajuda de amigos que já viviam em Portugal e logo começou outros serviços: assistente de cozinha e empregada de limpezas, áreas em que nunca havia atuado, mas vontade de trabalhar não faltava. Arrendou um quarto partilhado que, em poucos meses, começou a encarecer: de 200 euros para 300 euros. Depois, para 400 euros. “Eu me recuso a compactuar”, pontua.

Foi então que uma amiga descobriu o parque de campismo improvisado nos terrenos privados da Quinta dos Ingleses, algo que não era incomum na vida da brasileira, que foi escoteira por quase 20 anos. “Se eu soubesse antes, já estava economizando 400 euros por mês. Não dava, eu pagava a renda, os impostos de recibos verdes, o passe e acabou. Não queria viver assim, sem economizar nada”, conta. Com poucas coisas, comprou a tenda e instalou-se no acampamento.

Um mês depois, foi a vez de Márcia juntar-se à estratégia. A carioca também não chegou ao país sem planeamento, que levou seis meses. O principal motivo para mudança foi o desejo de recomeçar aos 43 anos, depois de passar anos cuidando da mãe doente no Brasil. Com um curso de técnica em enfermagem, experiência em cozinha e em casas de família, estava disposta a trabalhar no que fosse preciso.

A brasileira está no país há menos tempo: chegou em março deste ano. Por acaso, durante um passeio em um miradouro de Lisboa, conheceu Andreia e logo ficaram amigas. Márcia viu que a realidade dos arrendamentos era ainda mais cruel (ontem, o índice internacional Housing Anywhere apontava Lisboa como a segunda cidade mais cara da Europa para arrendar apartamento). Para poupar, arrendou um beliche por 250 euros em um quarto partilhado com mais três pessoas.
Além da falta de privacidade, do controlo sobre horas de chegada e saída, outros moradores do prédio arranjavam problemas que, muitas vezes, levavam a polícia a intervir. Paz e sossego não havia. Mas, outra coisa também incomodava: o quarto era infestado de percevejos e acordava todas as manhãs com picadas.

Andreia, já a morar no acampamento, sugeriu que Márcia passasse ali uma noite para ver como era. “Dormiu aqui como um anjo e sem percevejos”, lembra a amiga. Assim, a vida ficou mais fácil. Passaram a dividir as tarefas e também a companhia. Aos poucos, melhoraram as condições e também a própria dinâmica do dia a dia. Por exemplo, qual a quantidade de comida a preparar para não estragar e desperdiçar.

Sem frigorífico, afinal, não há energia elétrica, cozinham apenas para o dia. Os poucos alimentos que necessitam de refrigeração, como manteiga, vegetais congelados e carne, ficam numa caixa térmica que lhes foi oferecida por um amigo. As imigrantes, aliás, relatam que hoje se alimentam melhor do que quando pagavam 400 euros por um quarto. “Não sobrava para comprar nada diferente. Nunca passámos fome, mas hoje comemos muito melhor”, destacam.

Com um acampamento a poucos metros da praia, as brasileiras aproveitam para apanhar sol e entrar na água sempre que possível, especialmente nos dias quentes em que estão de folga. Utilizam o chuveiro para tomar banho e os restaurantes próximos para comer fora. “De vez em quando nos damos esse direito. Agora podemos, com o que poupamos com a renda”, ressaltam. A dupla adora arroz de tomate com pataniscas, peixe frito e camarão.

Hora de trabalhar

O tempo continua chuvoso e com muito vento, mas as tendas permaneciam intactas. Nas horas anteriores, várias foram as trocas de mensagens e ligações com pessoas de outras tendas e amigos de fora que checavam se estava tudo bem. “Quando o tempo está assim fazemos uma ronda para ver se alguém precisa de ajuda”, explica Andreia.

Finalizada a refeição e arrumação do espaço, era a hora de se prepararem para o trabalho. A dupla limpa casas e alojamentos locais, sendo a maioria clientes fixos e fiéis. Assim como a rotina de moradia, dividem também as funções no trabalho: um dia uma limpa a cozinha e quarto e no outro fica com a sala e a casa de banho, por exemplo.

Trocam de roupa, vestem jaquetas que protegem do temporal e botas, apanham os chapéus de chuva e partem para a jornada de comboio até Lisboa. Na mochila, levam uma muda de roupa limpa para trocar depois de tomar banho no trabalho.

As tendas ficam fechadas com cadeados por precaução, mas garantem se sentirem protegidas, além do senso de comunidade com os demais vizinhos. Entre o caminho da estação, ida e volta nos transportes públicos mais o tempo serviço, as profissionais voltam somente perto das 22h00. Continua a chover e a ventar, a escuridão é quase total – iluminam o caminho com as lanternas dos telemóveis.

Na volta, demonstram com atitude que existe uma parceria com a vizinhança e a preocupação com o bem-estar de todos, incluindo quem as visita. Andreia traz um colchão inflável, emprestado por um vizinho, para a tenda do DN – o colchão levado precisava de energia elétrica para funcionar, algo que não existe ali. Márcia também disponibiliza mais um cobertor para proteger do frio noturno.

A dupla chega de banho tomado e coloca os confortáveis pijamas de inverno. “Estamos varadas de fome”, comentam, enquanto já começam a preparar o jantar. É Márcia quem vai para a cozinha, mas Andréia ajuda com o corte dos alimentos e a alcançar os utensílios. Os dois telemóveis e uma fraca lanterna iluminam o pequeno espaço para cozer a refeição. O prato da noite será bifinhos de peru e massa com atum, molho de tomate e legumes. Tudo com muito tempero. “Minha comida é bem temperada, gosto de bastante alho, pimenta e coentro”, relata a cozinheira, que só não gosta tanto de cebola, ao contrário da amiga, que dispensa o picante.

Servem os pratos e lembram-se de gravar para o TikTok, onde mostram a refeição e deixam mensagem carinhosa aos milhares de seguidores. “Muita gente nos acompanha, uns nos parabenizam pela coragem, outros nos xingam. A realidade é que esses não gostam de nos ver sempre felizes e animadas, mesmo vivendo aqui sem luxos”, rebate Andreia. As imigrantes também costumam responder às questões dos que partilham a intenção de mudar para Portugal. Elas não romantizam nada e aconselham a vir com “pelo menos 2 mil euros e vontade de trabalhar”.

Enquanto jantam, as amigas partilham os planos de futuro. A curto prazo, precisam de melhorar a estrutura com a compra de mais uma tenda que servirá exclusivamente de cozinha. Assim, Márcia conseguirá ter mais espaço e não precisará levar com o cheiro da comida no mesmo sítio onde dorme.

Outra ideia é construir uma casa de banho, a partir das habilidades profissionais de Andreia, que já tem o projecto desenhado na cabeça e investigou os materiais. Idealmente, gostavam de ter os planos concluídos até o inverno, para a estação ser mais confortável. Comprar novos cobertores e uma panela de pressão também está na lista.

A dupla tenciona continuar ali pelo menos por mais seis meses. É o tempo que estimam poupar o suficiente e comprar caravanas. Andreia já tem certeza da meta, enquanto Márcia ainda está a ponderar, mas tende a seguir o plano da amiga. Profissionalmente, a carioca quer realizar o antigo sonho de cursar gastronomia e trabalhar na área. A paulista, depois de ter a caravana própria, pretende começar a comprar as ferramentas de trabalho e retomar a carreira como marceneira – mesmo que em Portugal seja visto como “trabalho masculino”.

Após o jantar, organizam a cozinha e escovam os dentes. É hora de recolher-se para descanso após um longo e chuvoso dia. Os pingos continuam a cair e o vento a soprar forte. Encerradas as barracas, as luzes dos telemóveis apagam-se.

A noite segue com mais chuva e ventania, mas, como diz o certeiro ditado, depois da tempestade vem a calmaria. Ao amanhecer, o sol brilha e o mar pode ser visto do acampamento. Márcia e Andréia acordam com bom humor e agradecem por mais um dia. É hora de começar a rotina diária que já decoraram.

As brasileiras celebram o bom tempo. “É como a vida. Um dia está um pouco ruim, mas depois melhora. O importante é nunca desanimar”, diz Andreia entre bocejos e sorrisos.

Fonte: dn.pt por amanda.lima@globalmediagroup.pt

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