A medida que se descobre a extensão dos horrores da incursão do Hamas em território israelita, que causou pelo menos 1200 mortos e mais de 2700 feridos, Telavive e Washington comparam a organização que controla Gaza desde 2007 ao Estado Islâmico, no que poderá ser uma forma de preparar a opinião pública para a resposta militar, a que já decorre e aquela que se avizinha. Em Telavive confirmou-se a formação de um governo de unidade nacional, à medida que a operação militar contra o Hamas ganha volume e não se descura a possibilidade de uma segunda frente de guerra contra o Hezbollah.
Os israelitas estão chocados com a infiltração do Hamas no seu território, e com o catálogo de horrores que daí adveio, mas também com a simpatia à organização terrorista no Ocidente. “É chocante o grande apoio ao massacre de estilo nazi”, comenta ao DN um ex-funcionário do governo israelita. Talvez por isso, tem sido recorrente a comparação do Hamas ao Estado Islâmico (EI). Ao embarcar para Israel, o secretário de Estado norte-americano Antony Blinken disse que “não se via este tipo de depravação desde o Estado Islâmico”.
Na véspera, o discurso de Joe Biden comparara a “brutalidade e a sede de sangue do Hamas” aos “piores crimes do EI”, mas foi o primeiro-ministro israelita o primeiro a fazer a equiparação. “O Hamas é o Estado Islâmico e vamos derrotá-los assim como o mundo iluminado derrotou o EI. Este vil inimigo queria guerra e vai tê-la”, declarou Benjamin Netanyahu.
À declarada guerra de Israel ao Hamas mais uma peça se encaixou na quarta-feira, ao ser formado um governo de unidade nacional de emergência, no qual é integrado Benny Gantz, ex-ministro da Defesa e em tempos o homem que se apresentou como alternativa a Netanyahu. Além de Gantz, entram o deputado e antigo chefe das forças armadas Gadi Eisenkot, o ex-ministro da Justiça Gideon Sa’ar, o ex-ministro da Cultura Chili Tropper e a antiga ministra da Educação Yifat Shasha-Biton. Os cinco vão integrar o governo e o gabinete de segurança, enquanto o chamado gabinete de guerra estará reservado a Netanyahu, a Gantz e ao ministro da Defesa Yoav Gallant.
Durante a vigência do governo de unidade nacional a controversa reforma judicial não irá ser aprovada. Tal está garantido nas cláusulas do acordo com Benny Gantz. Ao anunciar aos cidadãos a formação do executivo de emergência, Netanyahu não entrou em pormenores sobre a forma como o país vai responder, mas voltou a comparar o Hamas com o Estado Islâmico, ao dizer que há provas de que houve soldados decapitados, crianças mortas a tiro, mulheres violadas e outras pessoas queimadas vivas. “Cada membro do Hamas é um homem morto”, ameaçou.
Sobre a notícia avançada na véspera aquando da visita de jornalistas ao kibutz de Kfar Aza de que 40 bebés teriam sido mortos, uma informação avançada pela cadeia i24 News, um porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros de Israel disse à AFP que “neste momento” não há confirmação de qualquer número. Durante a visita, os militares disseram aos jornalistas que um número entre 100 e 150 pessoas tinham sido mortas no local e um soldado referiu a existência de corpos mutilados e de decapitações, mas não deu mais pormenores.
Um repórter da Sky News garante nunca ter visto tanto material de guerra no mesmo local, referindo-se ao norte de Gaza, bem como tropas a chegarem à região de forma numerosa, além de bulldozers, o que poderá ser um sinal da propalada invasão terrestre. Um capítulo que, segundo a The Economist, o Hamas crê que Israel não tem condições para sair vencedor.
Além de Gaza, uma segunda frente poderá ser aberta com o Hezbollah. “Não queremos assistir a uma escalada no norte, mas se nos for imposta uma guerra em duas frentes, não seremos apanhados de surpresa”, garantiu o conselheiro de Netanyahu Mark Regev à Sky News.
Os Estados Unidos e o Reino Unido voltaram a demonstrar total apoio a Israel – assim como as instituições europeias, ao juntarem os principais dirigentes à entrada do Parlamento Europeu. O ministro dos Negócios Estrangeiros James Cleverly sentiu de perto o que os israelitas estão a viver, ao ter de correr para um abrigo quando as sirenes soaram. “A ameaça dos foguetes do Hamas paira sobre todos os homens, mulheres e crianças israelitas. É por isso que estamos lado a lado com Israel”, disse depois.
Ao britânico sucede hoje o norte-americano Blinken, quando na véspera os Estados Unidos mostraram disponibilidade para mobilizar um segundo porta-aviões para a região, se necessário, mas também que está a “trabalhar ativamente” para se abrir uma passagem de civis para fora de Gaza. O chefe da diplomacia irá também visitar o presidente da Autoridade Palestiniana, Mahmoud Abbas, de 87 anos, que tem estado em silêncio.
Foi do secretário-geral da NATO, entre os líderes e dirigentes ocidentais, que se ouviu palavras de prudência. “Espero que, claro, quando virmos a resposta israelita, esta seja proporcional. É importante que, à medida que este conflito continue, façamos todo o possível para evitar a perda de vidas civis inocentes”, afirmou Jens Stoltenberg.
O furtivo comandante que planeou os ataques
Nascido Mohammad Masri no campo de refugiados de Khan Yunis em 1965, filho de um fabricante de lençóis e cobertores, o comandante do braço armado do Hamas escolheu o nome de guerra Mohammed Deif depois de se ter juntado ao movimento islamista durante a primeira Intifada, que começou em 1987.
Conta-se que estudou física, biologia e química na Universidade Islâmica de Gaza, conhecimentos que poderá ter aplicado ao desenvolver a rede de túneis do grupo terrorista ou no desenvolvimento de bombas. Israel considera-o responsável pela morte de dezenas de pessoas em atentados suicidas. Esteve preso por Israel em 1989-1990 e também pela Autoridade Palestiniana, em várias ocasiões, já como comandante das Brigadas al-Qassam. Depois de ter eclodido a segunda Intifada, em dezembro de 2000, escapou-se de uma prisão palestiniana.
Dois anos depois, já considerado um mito entre os seus, escapou a uma tentativa de execução por parte dos israelitas, quando fugiu do automóvel em que seguia e que foi alvo de três mísseis disparados por helicópteros. Desde então terá escapado a um total de sete atentados, embora não de forma ilesa: terá perdido a visão num olho e uma das pernas também ficou gravemente ferida. A mulher, a filha de três anos e o filho de sete meses morreram num ataque aéreo israelita em 2014, e agora a casa que pertencia ao pai terá sido também alvejada, tendo morrido um irmão e outros dois familiares.
Conta uma fonte à Reuters que foi em maio de 2021, no seguimento de uma incursão israelita à mesquita de al-Aqsa, em Jerusalém Oriental, que Deir começou a planificar uma vingança. “Foi desencadeada por cenas e imagens de Israel a invadir a mesquita de al-Aqsa durante o Ramadão, a bater nos fiéis, a atacá-los, a arrastar idosos e jovens para fora da mesquita. Tudo isto alimentou e incendiou a raiva”, disse a fonte. Esta explicou que a decisão foi tomada em conjunto com o líder do Hamas em Gaza, Yehya Sinwar, mas que Deir é o cérebro de uma operação que, garante, o Irão apenas sabia que iria existir. Um pouco como o próprio Deir, que diz quem o conhece, “vive nas sombras”.
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