“Hello!” Nos pontos mais frequentados por turistas ou, por exemplo, no metro, a cena repete-se uma e outra vez. Alguém arranha um olá em inglês; depois, se se sentir confortável prossegue a conversação. Ou então, pega no smartphone e usa a aplicação de tradutor por voz. A abordagem tem como objetivo pedir para tirar uma fotografia com os ocidentais. Por vezes perguntam ainda a origem (e de nada vale responder Portugal com sotaque luso ou das ilhas britânicas: Pútáoyá é a fórmula vencedora). As crianças não escondem o espanto, boquiabertas.
Outros jovens e adultos, sem se darem ao trabalho, e de forma mais ou menos discreta, captam imagens. Os estrangeiros ainda escasseiam na capital chinesa, mas não são os pequineses quem se mostra curioso: são turistas internos oriundos da província. Além da experiência do contacto com o “selvagem” ocidental, alguns estão pela primeira vez em Pequim – e todos sentem por fim o término da política de covid zero. Ao fim de três anos, já podem circular pelo país sem restrições.
Na ressaca do ano novo chinês, as estatísticas indicavam que o volume das viagens domésticas estava a chegar aos 90% da pré-pandemia. Foi também em janeiro que o regime autorizou as viagens em grupo ao estrangeiro, ou antes, a um grupo de 20 países como a Rússia ou a Tailândia, dois meses depois a outro grupo que incluía Portugal e o Brasil, e desde agosto ao Japão, EUA ou Austrália. Um mercado muito apetecido (em 2019 gastaram 234 mil milhões de dólares em turismo externo), mas segundo inquéritos, os chineses querem um ambiente seguro no que respeita à covid e à forma como serão recebidos. A isso junta-se o aumento do preço dos bilhetes de avião (em muitos casos para o dobro) e uma perspetiva económica pouco risonha. Para já preferem ficar por casa, enchendo as principais atrações turísticas como a grande muralha, a Cidade Proibida ou o Templo do Céu e, quanto muito, visitarem as regiões especiais de Macau e Hong Kong.
Em sentido oposto, os turistas estrangeiros ainda são poucos, uma fração dos 136 milhões que visitavam o país anualmente. Sem dados oficiais disponíveis, pelo que se vê nas ruas e centros comerciais, dir-se-ia serem na maioria russos. Não é de esperar muitos norte-americanos nem australianos, uma vez que as autoridades de ambos os países emitiram avisos sobre possíveis “detenções arbitrárias”.
Vigiada e digital
Como todas as cidades chinesas, há em Pequim um sistema de videovigilância que recorre à inteligência artificial para reconhecimento dos cidadãos. Na capital, estima o site especializado Comparitech, há mais de 1500 câmaras em cada 2,5 km2. Assim como ao visitante não há muito mais a fazer do que alinhar com o pedido de fotografias em conjunto com perfeitos desconhecidos, a vigilância é um dado adquirido, e neste caso, mais discreto.
Além daquela que lhe é imposta pelo regime, a sociedade aderiu há bastante à tecnologia. Num país onde há mais smartphones ativos (1,6 mil milhões no final de 2022) do que população (1,4 mil milhões), estes são usados para mais do que selfies. Em Pequim, o dinheiro físico está em vias de extinção, com os pagamentos a serem feitos via redes sociais WeChat e Alipay, da mesma forma como se encomendam serviços de entrega de comida ou de transporte. O maior contratempo para um pequinês é ficar sem bateria, pelo que existe uma rede de aluguer de power banks um pouco por todo o lado. E ainda que não haja uma perceção de que na capital chinesa pontifiquem os últimos gritos da era digital, o certo é que é possível algumas excentricidades, como comer um bolo ou um gelado tendo como vendedor um veículo autónomo.
Os dirigentes comunistas mostram-se inflexíveis perante os excessos, em especial no que se relaciona com os jogos de vídeo, que foram classificados de “ópio espiritual”. Os menores de 18 estão desde 2021 limitados a uma hora de jogo online às sextas, sábados e domingos. No ano passado, a versão chinesa do TikTok, Douyin, restringiu a utilização diária a 40 minutos ao menores de 14 anos.
Amargura para os jovens
A preocupação vira-se agora para os jovens adultos. Neste ano chegam ao mercado de trabalho mais recém-formados do que residente em Portugal, 11,6 milhões, e juntam-se a muitos outros que não conseguem emprego. Depois de ter atingido em junho o máximo histórico de 21,3% de desemprego na faixa até aos 24 anos, o instituto responsável pelas estatísticas anunciou há dias que iria deixar de divulgar os números da população inativa por idade, tendo alegado a necessidade de aprimorar os dados relacionados com a força de trabalho.
Os correspondentes dos meios de comunicação social ocidentais têm relatado a inquietação de uma geração preparada mas que, pela primeira vez em décadas, está a embater numa realidade que não condiz com o progresso obtido desde a abertura política e económica levada a cabo por Deng Xiaoping e que conseguiu tirar da pobreza 800 milhões de pessoas. Em junho, a revista The Atlantic determinava “o fim do otimismo na China”; mais recentemente a The Economist chamou para capa “A juventude desiludida da China” devido à economia. “Não consigo dormir à noite”, contou à AFP Yang Yao, de 21 anos, que se mudou da província de Zhejiang, no leste, para Pequim, mas que ao fim de semanas de procura ativa não consegue trabalho.
O regime respondeu com dureza, e logo pela voz do líder máximo, Xi Jinping. “Os inúmeros exemplos de sucesso na vida demonstram que, na juventude, escolher comer amargura é também escolher colher recompensas”, disse num artigo sobre a geração mais jovem publicado no Diário do Povo. Dando como exemplo a sua experiência de trabalho no campo durante a Revolução Cultural, quando Mao Tsé-tung enviou 16 milhões de jovens da cidade para trabalhar nos campos, Xi usou várias vezes a expressão idiomática “comer amargura”, isto é passar por provações sem queixas.
“Pedir-nos que comamos amargura é como um logro, uma forma de esperar que nos dediquemos incondicionalmente e realizemos tarefas que eles próprios não estão dispostos a fazer”, respondeu ao New York Times uma recém-formada em design gráfico que deu pelo nome de Gloria Li.
Tempos tortuosos
Além dos números do desemprego, os das exportações e os do endividamento, a par da deflação, também darão que pensar. Dizem os economistas ocidentais que o modelo económico, baseado no investimento em infraestruturas do país (uma média de 44% do PIB entre 2008 e 2021, quando a média global é de 25%) poderá estar no limite, bem como a desproporcionada importância do mercado imobiliário na economia, cerca de um quarto do total.
Os EUA, que há muito designaram a relação com a China de “competição estratégica”, disseram pela voz do presidente Joe Biden que a economia chinesa é “uma bomba-relógio”, em alusão ao que alguns analistas apontam como a tentação de recorrer a uma manobra de diversão, por exemplo com Taiwan. “Certos políticos e meios de comunicação social ocidentais exageraram as atuais dificuldades na recuperação económica da China pós-covid. Os factos provarão que estão errados”, disse um porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros, Wang Webin, ao mesmo tempo que reconheceu estar em curso “um processo tortuoso de recuperação”.
Vibrante e descontraída
A possível crise que se avizinha, sinalizada pela eventual bancarrota de um tubarão do imobiliário que dá pelo nome de Country Garden, é impossível de intuir ao vaguear no pico do estio pelos hutongs (bairros tradicionais), pelas ruas comerciais ou em redor dos lagos, com os habitantes e turistas a comungarem da vibração de uma cidade sede do poder e com evidentes medidas de segurança — por exemplo, o controlo dos pertences dos passageiros à entrada das estações do metro.
O aparato securitário conjuga-se em paralelo com uma descontração dos cidadãos no quotidiano visível por exemplo num código de vestuário relaxado, no caos controlado do trânsito em duas rodas – para poupar bateria, a maioria dos condutores das silenciosas elétricas não acende a luz à noite, o que as torna num objeto de especial perigosidade – , na diversificada vida noturna ou nas atividades de lazer em grupo, como as coreografias ou o jianzi (jogo sem mãos com um volante de penas), entre outras.
Maciço verde
Até o mais distraído dará conta da mancha verde que cobre a cidade, ao longo das estradas, por baixo de viadutos e pelos parques e espaços verdes. Os dados mais recentes dizem que as campanhas de florestação traduzem-se numa taxa de cobertura verde urbana superior a 49% e que a área florestal e verde aumentou em dez anos o equivalente a 16 vezes a área do concelho de Lisboa. O plano ambiental foi mais amplo, ao incluir medidas como a construção de centros de tratamento de água, reabilitação e construção de charcos e zonas húmidas, que perfazem 620 km2.
Com mais de 21 milhões de habitantes e parte de uma região capital com 110 milhões de habitantes, Pequim já foi uma das cidades mais poluídas do planeta. Mas um conjunto de planos iniciados com a construção das infraestruturas dos Jogos Olímpicos de 2008 deram o pontapé de saída para uma melhoria inegável na qualidade de vida. A qualidade do ar é afetada sobretudo pela poluição automóvel e pela queima de carvão para produzir eletricidade, entre outras indústrias poluentes. Em resposta, as autoridades ordenaram o encerramento das maiores fontes de emissões poluentes na província de Hebei, à volta da área metropolitana da capital.
Não foi assim há tantos anos que a bicicleta era o transporte mais usado em Pequim. Agora está a recuperar a popularidade graças aos programas de partilha de bicicletas, que funcionam em conjugação com a crescente oferta de transportes públicos: em 2000 havia duas linhas de metro que totalizavam 27 quilómetros; agora há 27 linhas em mais de 800 quilómetros e outros 240 quilómetros estão em construção.
Uma alternativa ao automóvel, até porque uma das medidas do combate à poluição na capital passa pela proibição da circulação de veículos a combustão um dia por semana com base nas matrículas. Ao mesmo tempo há uma política agressiva de incentivo aos veículos elétricos. Hoje, uma moto ou um microcarro movidos a gasolina é uma raridade. Resultado: em 2014, um relatório concluía que a cidade estava no limiar do “inabitável para seres humanos”; em 2021, pela primeira vez em décadas, Pequim passou a cumprir os padrões de qualidade do ar. A concentração de partículas caiu 63% em menos de dez anos, um feito sem precedentes.
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