Não é o homem de uma só canção mas, na internet, basta pesquisarmos Tony Bennett para que o vigilante algoritmo comece a sugerir-nos voos e hotéis em São Francisco. É um sinal destes tempos aficionados aos rótulos, que importa contrariar no momento de evocar a importância e a longevidade deste nome maior da música popular norte-americana, que morreu esta sexta-feira, na sua Nova Iorque natal, aos 96 anos.
Nascido a 3 de agosto de 1926, Anthony Dominick Benedetto partilhava com Frank Sinatra, com quem inevitavelmente será sempre comparado, as origens italianas e as dificuldades de uma juventude cheia de obstáculos. Filho de um comerciante, que morreu quando ele tinha apenas 10 anos, Tony cedo deu mostras de uma voz fora de série e de um sentido de ritmo único, de tal modo que, nesse mesmo ano trágico em que perdeu o pai, o rapaz seria convidado a cantar para o mayor de Nova Iorque, Fiorello La Guardia, na cerimónia de inauguração da ponte de Triborough, que ligou Manhattan a Queens.
O talento e a determinação de se tornar cantor (um pouco à imagem de Bing Crosby e Sinatra, seus ídolos, que, nessa época, já derretiam exércitos de corações sensíveis um pouco por todo o mundo) sobreviveram à puberdade e à mudança de voz, mas também à Segunda Guerra Mundial, já que, em 1944, Tony foi mobilizado para o Exército, participando nas campanhas norte-americanas em França e na Alemanha. Como revela na sua autobiografia, The Good Life, marcá-lo-ia particularmente a experiência de libertar um campo de extermínio nazi: Kaufering, espécie de subcampo na dependência de Dachau. A esses dias chamaria “um lugar na fila da frente do Inferno”.
De regresso a casa, Anthony Benedetto torna-se, por sugestão do ator Bob Hope, Tony Bennett e deixa-se levar pelo swing único do jazz (nomeadamente Louis Armstrong que endeusava). Em 1957, iniciava uma longa relação artística com o pianista e o arranjador Ralph Sharon, doravante seu diretor musical favorito, com quem gravou The beat of my heart, acompanhados por um grupo em que figuravam grandes nomes do jazz como Art Blakey, Chico Hamilton, Jo Jones y Herbie Mann. Um ano depois, nova proeza entre as lendas do jazz, gravando o primeiro de três discos com a big band de Count Basie. Ao longo da década de 50, em que o rock” n” roll revolucionava já o mundo da música, Bennett conseguiria ainda, com a sua voz de veludo e um poder de interpretação apenas comparável ao de Sinatra, grandes êxitos, com a chancela da Columbia Records, como The Boulevard of broken hearts, Because of you ou Cold cold heart. Mas o seu maior êxito de sempre aconteceria em 1962, com a balada que se tornou a sua imagem de marca, I left my heart in San Francisco.
Os anos 1960 e 1970 não seriam, no entanto, fáceis para os crooners. Com a indústria discográfica rendida ao pop/rock, Bennett (como Dean Martin ou Sammy Davis Jr, entre outros) parecia condenado à irrelevância ou a espetáculos nostálgicos nos casinos de Las Vegas ou Salt Lake City. Bennett mergulha então numa longa depressão, que o abuso de álcool e drogas agravará. Não foi, no entanto, o fim da linha. Com a ajuda do filho Danny, que se tornou seu agente, o cantor iniciará um regresso feliz no final dos anos 1980, que culminará, em 1994, com a gravação de MTV Unplugged. Os seus fãs de sempre rejubilaram, mas houve também uma nova geração conquistada pelo charme daquele swing cheio de romantismo e sofisticação.
Tony Bennett não mais se deixaria ultrapassar pelos tempos. Continuou a trabalhar (e a gravar) até 2021, quando revelou ao mundo que sofria de doença de Alzheimer. Nas últimas décadas da sua carreira, teve ainda a arte de estabelecer parcerias memoráveis com grandes nomes da música contemporânea, como Amy Winehouse (no seu tema clássico, Body and Soul), Lady Gaga (com várias canções, entre as quais That”s why the Lady is a Tramp) ou fazendo um álbum completo com Diana Krall.
A sua última aparição pública aconteceu em agosto de 2021, ao lado de Lady Gaga, no Radio City Music Hall, dois meses antes da publicação do disco conjunto, Love for Sale. Ao longo de uma carreira de quase 80 anos, Bennett teve amplo reconhecimento do público e dos seus pares, como revelam 18 Grammies, um prémio de Excelência atribuído pela Recording Academy em 2001 e dois Emmies. Entre as suas interpretações mais notáveis, contam-se vários temas que são parte essencial do chamado american songbook e, mais do que isso, património mundial como I left my heart in San Francisco, New York State of Mind, Body and Soul, Stormy Weather, The Way you look tonight, Smile (com um notável dueto com Barbra Streisand) ou The Good Life. Aos 96 anos, numa manhã de Verão, Anthony Benedetto chegou ao fim do seu longo percurso. Mas, de Tony Bennett, fica-nos ainda a voz de veludo e, como na canção de Johnny Mandel que ele tão bem cantou, a sombra do seu sorriso.
Fonte: dn.pt