Putin vira foco para a Ucrânia mas não esconde “fissuras” na sua liderança

Um dia depois da rebelião do Grupo Wagner, liderada por Yevgeny Prigozhin, o Kremlin emitiu uma entrevista do presidente russo gravada antes do motim. Enquanto o chefe da diplomacia americana denunciava o impacto na autoridade de Putin, as perguntas eram mais do que as respostas: onde está Prigozhin? Qual o futuro dos seus mercenários? Que impacto terá isto na Ucrânia?

A entrevista foi gravada na semana passada, mas não foi por acaso que o Kremlin decidiu que esta seria a primeira mensagem do presidente transmitida na televisão estatal depois da rebelião do Grupo Wagner ter mergulhado o país na incerteza durante 24 horas no sábado.

No domingo, Putin surgiu nos ecrãs garantindo ter como “foco principal a operação militar especial” na Ucrânia, como designa a guerra que iniciou em 24 de fevereiro 2022, quando invadiu o país vizinho. “O meu dia começa e acaba a pensar nisso”, afirmou, num esforço para voltar as atenções para o conflito na Ucrânia, desviando-as do que o secretário de Estado americano, Antony Blinken, considerou ser “um desafio direto à autoridade” do presidente russo, causado pelos homens de Yevgeny Prigozhin que provocaram “fissuras reais” na liderança russa.

Numa entrevista no programa Meet the Press da CBS, Blinken explicou que a rebelião dos homens do Grupo Wagner – que ameaçaram derrubar as chefias militares russas e avançaram até 200 km de Moscou antes de voltar para trás, após um acordo alcançado entre o presidente bielorrusso e Prigozhin – revelou “mais fissuras na fachada russa”. Para o chefe da diplomacia americana, o motim pode ter sido controlado e Prigozhin ter, aparentemente, aceitado o exílio na Bielorrússia, mas Putin “vai ter de responder a muitas perguntas nas próximas semanas e meses”.

Forçado a, no mesmo dia, ameaçar os revoltosos com “punições” exemplares e horas depois aceitar retirar todas as acusações de traição e incitação à rebelião militar contra eles em troca do exílio de Prigozhin e de os seus homens aceitarem integrar o exército regular russo, Putin surgiu na posição mais vulnerável em que já o vimos nos seus 23 anos no poder. Sem que se conhecesse o seu paradeiro nesse domingo, o presidente russo reafirmou-se confiante nos progressos da guerra na Ucrânia. Mas há quem tema que o inquilino do Kremlin possa agora optar por uma escalada no conflito, para provar que continua a detendo o controle.

Apesar de ter, na larga maioria, mantido o silêncio perante o que descreveu como uma questão interna russa, a comunidade internacional teve, no entanto, uma amostra do que uma alternativa a Putin pode ser. E não terão sido poucos os que respiraram de alívio quando Prigozhin mandou os seus homens regressarem às bases.

Um dos maiores receios é que o arsenal militar russo – o maior do mundo com perto de sete mil ogivas, um pouco mais do que o dos EUA – caia nas mãos de erradas. No dia em que se soube que as autoridades americanas teriam indicação, há alguns dias, de que Prigozhin preparava um motim, Blinken admitiu que “quando estamos a lidar com uma grande potência, especialmente uma potência nuclear, é algo preocupante”, e prometeu que a Administração americana vai ficar “muito atenta”.

Um dia depois da rebelião de Prigozhin, ontem eram mais as perguntas do que as respostas em várias frentes. O impacto que pode ter na guerra na Ucrânia é uma delas. Não se sabendo qual vai ser o futuro do Grupo Wagner, um exército privado mas que tem sido essencial na defesa dos interesses russos em palcos internacionais que vão desde a Síria ao Mali passando, claro, pela Ucrânia – se desaparece ou simplesmente sai da alçada de Prigozhin – uma das hipóteses levantadas pelos especialistas era a de que, se os mercenários seguirem o seu líder, poderão lançar ataques contra a Ucrânia a partir da Bielorrússia. Um cenário que também preocupa a NATO, sobretudo os seus três membros que fazem fronteira com a Bielorrússia: Letônia, Lituânia e Polônia.

Em Kiev, esta rebelião foi recebida como uma oportunidade para recuperar territórios ocupados pelos russos, e até se terá sonhado com uma guerra civil no país vizinho que o obrigasse a terminar o conflito ucraniano, o que não se concretizou. Ontem, Mikhail Podoliak, o principal conselheiro do presidente Volodymyr Zelensky garantiu que Prigozhin “humilhou” Putin, mas disse-se convencido de que o presidente russo irá “eliminar” o antigo aliado que o desafiou. Apelidado de “chef de Putin”, devido à sua proximidade com o presidente conquistada quando fazia o catering para o Kremlin, há meses que Prigozhin vinha criticando ferozmente as chefias militares russas, culpando pelas mortes dos seus homens por não lhe fornecerem armas e munições.

No terreno, a saída do Grupo Wagner, responsável pelos maiores avanços russos na Ucrânia, foi aproveitada pelas forças de Kiev, que se beneficiaram ainda de os militares chechenos presentes no terreno terem atravessado a fronteira para tentar travar o Grupo Wagner. Ambos estariam ontem regressando às suas bases, mas, se um Putin enfraquecido pode ser um Putin mais perigoso e feroz, em Kiev o sentimento era de otimismo, com o mesmo Podoliak a sublinhar que “a situação na Rússia está incontrolável”, e acrescentar: “preveem-se novas rajadas de vento”.

Outras das grandes incógnitas é onde estará Prigozhin e o que fará a seguir. O líder do grupo Wagner não voltou a dar sinal de vida depois de dar ordens aos seus homens para voltarem às bases. Poucos acreditam que o homem que durante anos fez o trabalho sujo do Kremlin vá desaparecer. E a verdade é que o próprio nunca referiu ter aceitado o exílio na Bielorrússia. Certo é que se Prigozhin não pode dormir descansado depois de desafiar abertamente Putin; o presidente russo vai ter de provar que consegue tapar as “fissuras” que este causou na sua autoridade.

Informações: helena.r.tecedeiro@dn.pt

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